Por Leonardo Cisneiros
Saiu no último número do Diário Oficial do Município um decreto regulamentando o instituto da ARRECADAÇÃO POR ABANDONO, um instrumento do Código Civil que permite ao Poder Público incorporar ao patrimônio público imóveis abandonados sem uso por seus proprietários e que não estejam cumprindo sua função social. Essa é uma demanda que nós, dos movimentos sociais, temos colocado junto com a discussão sobre imóveis subutilizados no Centro da Cidade e sobre a deterioração do patrimônio histórico. Esse instrumento pode ser uma arma importante para uma revitalização popular do Centro do Recife, promovendo moradia social nas áreas com mais infraestrutura e vários usos socialmente interessantes. No entanto, como tudo que essa gestão faz, a coisa vem às escondidas, de surpresa, sem um debate público.
O decreto na íntegra está aqui: https://drive.google.com/open…
Matéria da Folha de PE: https://www.folhape.com.br/…/NWS,77822,70,449,NOTICIAS,2190…
Uma análise mais detida precisa ser feita mais adiante, inclusive comparando com a regulamentação em outras cidades, mas alguns pontos que já vale destacar:
O primeiro estranhamento é ver essa questão ser regulamentada pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que passou a incorporar em suas atribuições questões de empreendedorismo e dinamização econômica, e não pelas secretarias de Planejamento Urbano, de Habitação, pelo Instituto da Cidade Pelópidas da Silveira, pela URB ou pela Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural. Desde a Ocupação Marielle e do relatório feito pela Habitat, A Cidade Somos Nós, CAUS, FASE e MTST ¹ sobre imóveis abandonados no Centro que uma discussão sobre esses instrumentos vinha sendo feita em interlocução com o ICPS e com a secretaria executiva de Habitação. Primeiro, isso revela a completa falta de comunicação entre os órgãos da Prefeitura e MAIS UM dos vários exemplos do caos que é a política urbana nesta gestão, sendo tocada de forma descoordenada por órgãos diversos. E isto não é sem consequências. Esse instrumento precisa ser prioritariamente um instrumento de garantia da função social da propriedade, da destinação de imóveis em áreas centrais para usos socialmente interessantes, uma ferramenta de planejamento e de proteção do patrimônio histórico. Isso precisava ser discutido a partir do ponto de vista da função social da cidade, ser discutido participativamente no Conselho da Cidade e em outras instâncias. Sem essa perspectiva, o risco é que o instrumento acabe não sendo efetivo ou, pior, sirva a outros propósitos.
Mas isso não é um problema só da elaboração do decreto. Na gestão do processo ele continua: o procedimento de arrecadação dos imóveis abandonados passará por uma comissão que não inclui representantes dos órgãos de planejamento, de proteção do patrimônio ou da secretaria de habitação e que será presidida por um PROCURADOR e não por um arquiteto-urbanista. Isso garante que a perspectiva da “segurança jurídica”, que sempre favorece o proprietário especulador, esteja em primeiro lugar e não a perspectiva da função social. Outros pontos do decreto também são mais favoráveis aos proprietários do que o exigido pelo Código Civil ou leis de outras cidades, tais como um prazo maior de inadiplência do IPTU para ser presumido o abandono (o Código Civil fala em 3 anos, o decreto exige pelo menos cinco) ou um complicado processo administrativo para que a partir daí, depois de esgotados todos os recursos, se dê entrada num processo judicial para a Prefeitura solicitar a imissão da posse. Só a partir daí se contaria o prazo de três anos para o proprietário contestar a arrecadação, que ainda poderia ser revertida! É muita chance para favorecer alguém que deixou algo abandonado muitas vezes com a intenção de especular com a valorização do imóvel. O decreto fala, copiando do decreto federal nº 9310/2018, que o abandono é PRESUMIDO caso haja inadimplência de cinco anos de IPTU, porém não explica o que isso significa e não permite a Prefeitura se imitir na posse imediatamente nesse caso. (editado) Também não exige que o proprietário pague suas dívidas para contestar a arrecadação nem que, por exemplo, protocole um projeto de reforma, provando que tem a intenção de retomar o uso do imóvel.Tudo fica remetido a um Termo de Ajustamento de Conduta em que pode rolar de tudo, inclusive condições muito benevolentes para proprietários amigos.
Por fim, o decreto define um leque amplo demais de possibilidades de uso do imóvel, indo além do uso prioritário para habitação ou equipamentos sociais, que é a tônica das diversas leis que regulamentam o instrumento, e incluindo perigosamente a destinação de “fomento ao desenvolvimento e ao empreendedorismo”, que permite entregar o imóvel para a atividade empresarial pura e simples. Esse tipo de coisa abre espaço para que, em vez de ajudar a resolver o problema da moradia nas áreas centrais e da elitização do bairro do Recife, esses imóveis acabem reforçando o padrão de ocupação do Porto Digital que é grande parte da causa desse problema. Não havendo garantia de um olhar do planejamento urbano PARTICIPATIVO, com controle social, na gestão tanto do processo de arrecadação quanto no da destinação dos imóveis, esse é um risco mais forte ainda. E aí, pior do que o risco de ter uma lei que não pegue, é acabarmos com uma que agrave os problemas do urbanismo excludente da cidade do Recife.
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Para comparação (e ver como os procedimentos são mais simples e com menos brechas para os proprietários):
Plano Diretor de SP: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/…/texto-da-lei-i…/…
Regulamentação de Salvador: https://leismunicipais.com.br/…/lei-ordinaria-n-8553-2014-d…
Regulamentação de São Luís: https://leismunicipais.com.br/…/lei-ordinaria-n-4478-2005-r…
¹ Matéria sobre o estudo sobre imóveis abandonados em Santo Antônio:https://marcozero.org/estudo-confirma-ociosidade-de-imovei…/